Thursday, April 30, 2009

As aparências enganam

Parecia um pequeno monstro branco. Talvez tivesse 40 cm de comprimento, 20 de altura e 12 de largura. Era deformado na parte superior, mas a base estava lisa. Eu não daria nada para aquele monstro de gesso que mais parecia ter sido manipulado por uma pequena criança bagunceira. Mas Lucas se orgulhava do monstrinho, ele era o pai/mãe, ele gerou aquela massa branca que agora se apoiava sobre a mesa e orgulhosa esperava a professora.

O monstro foi colocado sobre uma outra mesa assim que a mestra chegou. Ela veio preparada para uma espécie de cirurgia, instrumentos à mão: "Tá tá tá", ela batia com um martelo na base de uma outra ferramenta que tinha uma ponta de uns cinco cm de comprimento e era bem fina. Bateu de um lado, bateu de outro. Lucas fitava o filho com olhar atento, preocupado, ansioso. "Quer que eu segure?", perguntou o futuro pai querendo ajudar a 'médica'. "Huhum", respondeu sem responder. Agora Lucas tocava seu pequeno.

De repente o primeiro lampejo der uma obra de arte surgiu como mágica. Uma parte do gesso grosso e deformado se deslocou e por debaixo um material ainda mais alvo queria aparecer. A surpresa foi como ver a cabeça do bebê entre as pernas da mãe no parto normal. Você só vê a cabeça, mas sabe que ali existe um corpinho todo.

Mais uma martelada. "É um Ford", suspirou o paizão se gabando. A mestra continuou compenetrada, enquanto o pai babão quase não se aguenta de tanta ansiedade. Não aguenta mais esperar para enfim ver o filho inteiro.

O processo de Lucas começou com a idéia de um carro mais ou menos no computador. "Tem gente que consegue fazer tudo no Corel Drawn, mais eu não sou bom com essas coisas de cálculo e aí eu fiz um pouco no programa e o resto fiz aqui na sala de arte mesmo". O estudante de Desenho Industrial, depois de pensar o projeto, moldou o carro com argila e base e isopor, era o seu filho. Foram horas de paciência regadas à muita água nas mãos, habilidade nos dedos e idéias na cabeça. Da argila surgiu um molde de gesso, aquilo que parecia o monstro branco. Com esse molde pronto, Lucas pincelou o interior com vaselina e outras substâncias e recheou com gesso mais fino. Por fim alisou o fundo, que também poderia ser o topo, mas não importa. E para arrematar, grossos elásticos pretos seguravam o molde. "Esse processo fiz ontem e hoje já deveria estar tudo seco", mas não estava. As marretadas não paravam, o fim do processo se tornara difícil. "Aumenta a dose de anestesia. Há quantas está o batimento cardíaco?" perguntaria o médico se aquilo realmente fosse uma cirurgia. Mas não era. Lucas estava dentro do Mackenzie, em um canto de fácil acesso pra quem sabe o que tem por lá, mas que para muitos passa desapercebido, um lugar indiferente. Como aquela situação que para Lucas era o trabalho mais importante. O trabalho para o qual ele se dedicara com vigorosidade, era o único da turma nesse estágio avançado do projeto, no entanto para tantos outros colegas que dividiam com ele a sala, não passava de mais um trabalho de graduação.

A professora já começava a mostrar rugas de preocupação. "Vira aqui Lucas, segura desse lado. Parece que agora grudou mesmo". "Tá! Crack!!!", a martelada quebrara uma parte pequena do carro. Lucas olhou com olhar triste, meio sem saber o que fazer, mas a mestra consolou, "a gente passa massa corrida aqui". Ela desistiu, foi atrás da massa corrida. Lucas pegou as ferramentas e foi tratar sua criatura. No começo até deu certo, porém mais um pequeno pedaço se partiu. Por fim ele decidiu que tiraria o excesso com a lixa.

Tivera alguns problemas, mas o filho se mostrava exuberante. A massa monstra branca deu origem a uma obra de arte. Como vimos há pouco com Susan Boyle. A gorda feia, com cabelo desgrenhado, sem maquiagem e de vestido brega foi zombada, ninguém daria nada por ela, mas assim que o molde, a casca monstra que a sociedade criou caiu, o mundo viu e ouviu sua voz.

Enfim a massa corrida chegou para o retoque e Lucas trabalhou com cuidado, muito cuidado. "Agora só falta lixar?", perguntei curiosa. "Colocar na estufa, esperar a massa corrida secar, lixar para aperfeiçoar detalhes, fazer um outro molde de gesso, preencher com fibra de vidro e aí, pintar". Ufa! O carro vai ficar pronto. Mas a cada etapa vencida, Lucas perde tudo o que fez. As horas passadas moldando a argila se quebraram, o molde de gesso que originou o carro de gesso também se partiu o carro de gesso não vai sobreviver ao peso do molde que irá envolvê-lo e o último molde vai desaparecer quando por fim o carro de fibra de vidro vier à tona. É como a velha história da semente que cai na terra e precisa morrer pra que a árvore nasça. Muitas vezes uma semente sem graça, feia, mas que faz brotar árvore suntuosa e elegante, como o carro gracioso que nasceu do molde monstro que lhe dera a vida, como a voz de Susan que vem embrulhada em uma vida sofrida e bruxa, que a sociedade não consegue perceber, mas sabe dizer quando alguém segue ou não a ditadura da beleza.

O carro, a semente, Susan, são todos exemplos de que alguém estava errado quando disse que os melhores perfumes estão nos frascos mais bonitos.

3 comments:

Anonymous said...

Bom ver que você voltou a escrever...

Abraço, Felipe.

Anonymous said...

Parabéns Carla!
Leitura que sempre tem uma moral final sempre se fascina.
Vou continuar acompanhando.
Não abandona o blog po!

Gde bjo
Sua amiga,
Aline Campos

Anonymous said...

Nossa, Carla! Nunca tinha entrado aqui. Hoje foi a primeira vez e já adorei!. Parabéns.
Beijos
Lillian Perote